O que as florestas podem ensinar sobre resiliência aos arquitetos e urbanistas

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Para se aprofundar na forma como pensamos o futuro das cidades, o ArchDaily se propôs a falar sobre resiliência no mês de julho. Como estamos nos preparando para desastres ou disrupções do sistema, este foi o tema principal de uma conversa com a bióloga Alessandra Araujo, fundadora da bio-inspirations e professora de Biomimética da Architectural Association Amazon Visiting School e do Master Ecological Design Thinking da Schumacher College, que trouxe sua visão para ampliar o debate da resiliência no campo da Arquitetura e Urbanismo através de um outro ponto de vista: a natureza.

O que é a resiliência na biologia e o que podemos aprender deste conceito na produção do ambiente construído?

A resiliência em sistemas naturais diz sobre a capacidade que o ecossistema possui em manter suas conexões e operações após um distúrbio. Sua qualidade se dá pelo entendimento da unidade que tem a inteligência de se regenerar e que esteja conectada em fluxos de troca. Gosto de fazer uma analogia com as florestas, pois nos enganamos ao pensar que ela é apenas uma fonte de recursos, quando na verdade é uma Universidade Viva, repleta de parâmetros de desenvolvimento que navegam por distintas complexidades com diferentes nichos de ocupação e com trocas constantes de energias entre extratos que geram uma capacidade de entropia e reciclagem de nutrientes através da biodiversidade, fundamentais para sua resiliência.

“Quanto à nossa forma de ocupar e salvo os bons planejamentos urbanos, ninguém está preocupado com quem está em cima e quem está embaixo.”

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Minhocão, São Paulo © Flagrante / Romullo Fontenelle

Por exemplo, quão alto podemos construir sem sombrear uma grande área? Se sombrear, como compartilhar alguma benefício com quem não receberá a luz do sol? É neste sentido de compartilhar e colaborar para existência que a floresta tem muito a ensinar.  

De uma forma mais prática, como poderíamos fazer uma analogia da árvore/edifício na cidade/floresta? 

Os ciclos de vida na floresta começam sobre a gestão das árvores-mães, as árvores mais antigas, que possuem registros de dados de contexto. Por exemplo, no anel de crescimento da árvore estão armazenados os dados de índice pluviométrico, de insolação, da qualidade do ar e do clima de cada estação que a árvore viveu. A árvore faz uso destes dados como uma resposta inteligente ao contexto, ajustando se produzirá mais ou menos flores que se tornarão mais ou menos frutos, que alimentará mais ou menos herbívoros e assim por diante, regendo toda a cadeia alimentar. Toda essa informação é distribuída através de uma rede que é uma simbiose entre raízes e fungos, que também compartilha nutrientes, água e oxigênio. Além disso, as árvores mais altas já não tem uma demanda de consumo tão alta como as que estão em desenvolvimento, no entanto elas possuem uma alta capacidade de geração de energia que é compartilhada com as outras.  Se for fazer uma analogia aos edifícios importantes ou condomínios residenciais, fica claro que essas ilhas urbanas que ocupam um grande espaço e se fecham em sua resiliência intra-muros não fazem nada por seu entorno, apesar de exigirem muito da infraestrutura urbana. Logo, a eficiência existente na floresta comparada à cidade é que a primeira é absolutamente colaborativa e a outra não.

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Floresta Amazônica © Victor Delaqua

Você acredita que essa seja uma operação viável nas cidades atuais?

Eu acho que é uma revolução do indivíduo, ou do individual, falando como unidade. Acho que hoje a economia está passando por uma revisão, muito se fala da economia circular, que tem muito a ver com possibilidades de fluxo e para mim tudo o que é circular possui um sentido de colaboração. Se é para a gente pensar na resiliência de cidades ou bairros, diminuindo a escala, são necessários sistemas redundantes e colaborativos. Na natureza o que gera colaboração entre um indivíduo e o outro é o famoso mutualismo, uma capacidade de troca que beneficia ambas as partes. Para isso existir num bairro é necessário entender quais são as capacitações de determinadas ocupações e como elas podem trocar seus excedentes. Por exemplo, energia solar. Se eu coloco uma placa no meu telhado e produzo mais do que eu consumo, o excedente é devolvido para a rede. No entanto, numa forma colaborativa, ao invés do meu excedente ser enviado instantaneamente para esta rede enorme, antes ele passa para um circuito fechado do bairro, para meu vizinho, depois para outro vizinho e se nenhum deles consumirem, aí jogamos para uma rede aberta, reforçando a redundância do sistema macro. Para ilustrar de um outro modo, podemos ter como exemplo dois sistemas: um matricial no qual tudo é distribuído através de um único ponto e outro de rede, no qual a distribuição é realizada passando por todos os pontos.

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Sistema Matricial | Sistema de Redes

“Para mim, resiliência trata-se de como essa segunda opção de rede é operada, pois se uma ponta sofre algum distúrbio nela, existe uma redundância de várias outras conexões para apoiá-la e para manter o funcionamento de todo o sistema.”

Dentro deste sistema de redes, como um bairro poderia se recuperar após um distúrbio?

Para o bairro ter alguma condição de se recuperar após um distúrbio, suas unidades não devem ser mais indivíduos isolados, mas sim comunicantes, configurando sistemas integrados. Hoje o que acontece com o prédio da frente se o meu tiver uma queda de energia e o dele não? Nada. Ele vai olhar para mim e falar “que pena, estão à luz de vela” e eu “caramba, eles tem energia”.  E isso definitivamente não é operar em resiliência numa escala de bairro, mas sim em sobrevivências individuais.

Para uma resiliência eficaz é necessário colocar um limite geográfico?

Não, mas acredito que a expansão dos limites urbanos pode ser irresponsável. Por exemplo, da onde vem a água de São Paulo e para onde vai o esgoto? Da onde vem a comida e os produtos e para onde vão os resíduos?

“A cidade não consegue operar na sua necessidade primária dentro de seu limite de ocupação, essa deveria ser uma premissa muito interessante de resiliência.”

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Lixão da Estrutural. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado [CC BY 2.0 (https://creativecommons.org/licenses/by/2.0)] via Wikimedia Commons

Não quer dizer que devemos extinguir os campos e produzir tudo na cidade, nunca se trata de uma solução única, mas poderíamos tornar a cidade mais resiliente se ela tiver dentro de um raio menor uma parte maior da produção necessária para seu dia-a-dia. Além disso, vale ressaltar que unidades resilientes são muito descentralizadas. Se pensarmos que hoje moro num bairro que toda energia elétrica vem de uma hidroelétrica que está há 1000 km da minha casa, isso é uma loucura. Caso aconteça algo nessa distância eu fico sem luz em pleno país tropical com capacidade imensa de insolação. Por isso é válido o questionamento sobre, por que não temos nos bairros sistemas colaborativos e redundantes para geração de energia e evitar os riscos de enfrentar este problema? Isso é descentralização. 

Além da descentralização, a diversidade também é fator essencial para a resiliência na natureza, certo? Como isso se aplica às cidades? 

Sim, o fato da floresta operar com diferentes nichos de ocupação, inúmeras especializações e diferentes formas e escalas de consumo de energia, a torna mais resiliente, pois é composta por indivíduos com necessidades diversas em momentos distintos e esta dinâmica de necessidades gera equilíbrio dentro de um fluxo caótico. A luz do sol é a base de produção de energia na floresta, e possui seu pico de consumo, porém de acordo com sua incidência vertical e dos nichos de ocupação, a demanda desta energia é distinta, e a distinção faz parte do equilíbrio metabólico da floresta.

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MVRDV House / MVRDV © Ossip van Duivenbode

“O significado de diversidade na cidade é a mesma coisa, não está ligada diretamente com diferentes gabaritos e formas arquitetônicas, mas também com o modo como ela opera, com diferentes horários de funcionamento e ocupações diversas.”

Portanto, trata-se de uma diversidade de usos, quanto mais distintos e diferentes, melhor.

Resiliência e sustentabilidade são pautas discutidas há anos, mas mesmo assim é difícil encontrar mudanças significativas na forma que os arquitetos projetam, como você enxerga esse cenário?

É necessária uma inovação nos sistemas construtivos e nos materiais. Não podemos esperar resiliência de uma indústria que insiste em manter o uso de materiais como concreto e tijolo, que são provenientes de recursos findáveis no nosso planeta. Apenas nesse ponto pode-se falar muito sobre um estrangulamento de tecnologia. Não é desmerecer nenhum dos dois, mas está na hora de pensar fora da caixa. Que tecnologias podemos ter para construir de uma forma modular, que faça mais sentido num custo-benefício tanto na incorporação como na desmobilização? A quantidade de entulho que se gera numa demolição ainda é ridícula. Apesar das reciclagens que existem, não temos como reacoplar esses materiais os transformando em outras formas de construção.

“É urgente criar e construir unidades de expansão, na qual os materiais (ou módulos construídos) tenham resiliência para novos usos, ampliando o ciclo de vida de cada um deles.”

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Linpan Cultural Center / Archi-Union © Shengliang Su

Você saberia citar algum material que segue esta linha de pensamento?

Um bom exemplo de inovação é o tijolo criado pela arquiteta Ginger Dosier através de um processo biomimético, que se chama bioMASON. Ela mantém algo fundamental do tijolo que é a unidade fácil de manipular, mas é uma base inovadora e disruptiva que vem de uma receita milenar e da natureza, que é a formação das conchas.

Para finalizar, qual você considera o principal fator para uma cidade resiliente? 

“Uma cidade resiliente é uma cidade criativa e para ocorrer criação deve haver uma colaboração coletiva, ou seja, é necessário uma vida pulsante e abundante.”

Quanto menos segregar, quanto mais zonas mistas operando de forma descentralizada, mais ela é resiliente.

Cita: Victor Delaqua. “O que as florestas podem ensinar sobre resiliência aos arquitetos e urbanistas” 18 Jul 2019. ArchDaily Brasil. Acessado 28 Jan 2020. <https://www.archdaily.com.br/br/921326/o-que-as-florestas-podem-ensinar-sobre-resiliencia-aos-arquitetos-e-urbanistas> ISSN 0719-8906